terça-feira, novembro 30, 2004

Se...

Eu escreveria tanto mais
Se fosse Bocage ou Pessoa.
Eu escreveria tanto mais
Se soubesse fazê-lo.
Eu escreveria tanto mais
Se tivesse veia poética.

Mas não sou,
Não sei,
E não tenho.

Porque escrevo
O que escrevo então?
Este porquê eu não sei...

Pergunta

Queres saber o meu porquê?
Então olha para ti.
Sabes o teu porquê?
Se souberes não o digas.
É o teu.
O meu também é o meu.
Pensas que to vou dizer?
Onde estaria depois o mistério?
Onde estariam depois os porquês?
Não gostas de indagar?
Eu cá gosto.
Sabe bem.
Sabe melhor que respostas.
Essas rematam.
A pergunta alarga.
A pergunta expande.
Pergunta...
Podes sempre fazê-lo.
Não te impeço.
Só não esperes que te responda.
O meu porquê está dentro de mim.
Não tens que descobrir o meu porquê
Tens que me descobrir a mim.
Vá, perdeste a coragem?
O desafio é muito grande?
Pensei que quisesses saber.
A tua vontade não é assim tão forte.
Querias uma resposta que rematasse?
Que acabasse?
Querias o fácil?
Pois, desculpa-me...
A descoberta não é fácil.
Perguntar porquê talvez o seja.
Responder a esse é que já não.
Querias ter a parte fácil
E dar-me a difícil?
Pois, eu vou partilhar contigo o difícil.
Descobre o porquê.
Vá, assim também me ajudas.
Não sei o porquê completo.
Também ainda não me descobri.

Porque escreves?

Porque escreves?
Melhor, porque sufocas sem a escrita?
Porque é que tudo tem que estar por escrito?

Não sabes passar sem escrever?
Sabes que isso é doença?
Sabes que não o deves fazer?

Digo-te que não o faças.
Digo-te para teu bem.
Não te alivia isso,
Isso que chamas de escrita .

Letras e palavras?
Que é isso?
Não é nada.

Afasta-te enquanto te aviso.
Afasta-te porque sou eu que o digo.
Vá, ouve-me!

Não vês que só falo verdade?
Nunca te irei mentir...
Não escrevas,
Isso só faz pensar.

Faz mal...
Deixa isso!
Não me ouves?

Continuo...
Porque escreves?
Porque preferes não me ouvir?

É assim tão importante?
Não vejo nada de importante nisso.
E tu estás a ver bem?
A mim parece-me que não.

Escreverias

Escreverias sem cessar
Se soubesses o que sinto
Não é para te espantar
Mas não sei o que pinto

Escreverias sem cessar
Se soubesses o que penso
Não é para te alarmar
Mas não tenho bom senso

Escreverias sem cessar
Se tivesses conhecimento
Que ando a chorar
Por cantos de tormento

Escreverias sem cessar
Se não fosses eu
Perdida no ar
Sem nada seu

Adormecido

No cenário da tua vida
Aclamas noites alucinantes
De gentes estonteantes
Que são tanto como tu
No teatro do teu olhar
Há quem note que a coragem
Não passa de uma miragem
Com preguiça de gritar
No repetir do teu mostrar
Inventas-te uma história
Que em ti não há memória
Porque sabes que não é tua...

Continuas a ensaiar
A conveniência do sorriso
O planear do improviso
Que te faz sentir maior
No artifício dos teus gestos
Pensas abraçar o mundo
Quando nem por um segundo
Te abraças a ti mesmo
E assim vais vivendo
E assim andando aí
E assim perdendo em ti
Tudo aquilo que nunca foste...

Quando um dia acordares
Numa noite sem mentira
E te vires onde não estás
Vais querer voltar para trás...


Toranja

Adoro esta letra porque me identifico com ela. E provavelmente muitas mais pessoas o farão. Vivemos num teatro em que o que mostramos é o que pensamos ser conveniente os outros verem. Dizemo-nos fortes quando trememos por dentro, dizemo-nos grandiosos quando nos sentimos pequenos ao lado de tudo e todos... dizemos o que não somos porque não sabemos olhar para dentro e vermo-nos e, assim, construimos uma personagem agradável aos outros olhos enquanto nos vamos perdendo nesse cenário falso e de mentira. Mas nada como a letra da música para exprimir as palavras ocas que vou tentando encadear.

P.S. Resolvi ocultar o refrão porque penso que não tem muito a ver com o que eu pretendia transmitir.

sexta-feira, novembro 26, 2004

Cenário

Queria imaginar um cenário bonito
Então imaginei pássaros e flores...
Mas pareceu-me muito vulgar
Então pensei um pouco mais...
Decidi imaginar cores diversas
E vi o encarnado e o preto...
Mas só consegui ver linhas...
Então decidi imaginar formas
E imaginei um corpo...
Mas achei demasiado erótico...
Então pensei, desta vez, em livros
E agradou-me a ideia...
Quis cores para os livros
E imaginei beje e preto...
Preto nas letras, beje nas páginas...
Queria um cenário mais que visual
Então imaginei o cheiro...
Um cheiro a papel, velho e mofo
E senti-me bem naquele ambiente...
Um sentimento confortável, porém incompleto...
Então decidi imaginar o tacto...
Imaginei mãos e dedos
E o toque nas páginas...
Não precisei de imaginar mais
Estava já sentada à secretária
Com livros abertos no colo
Folheava, folheava, folheava...
Fique lá até o dia adormecer
Deixei-me ficar até eu adormecer...

Notas íntimas

"Jamais tive uma decisão nascida do auto-domínio, jamais traí externamente uma vontade consciente. Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinárias, inexpulsáveis associações cujo termo era o infinito."
Fernando Pessoa (1910?)

quinta-feira, novembro 25, 2004

Desespero

Estou só, com medo, perdida e confusa... As palavras fogem-me tal como o choro que penso ser alívio. A capacidade de analisar evaporou-se, a razão ausentou-se... Não sei pensar e não sei sentir. Que sei eu afinal? O que ando a fazer? A réstia de inspiração que julguei ter aliou-se à razão e abandonou-me... Sinto que fiquei sem nada, nua e vazia. Um vazio diferente dos outros; um vazio que já não sei caracterizar; um vazio que me contorce e me agonia; um vazio que afinal me faz sentir. Não é, então, tão vazio assim... É mais um aperto junto ao peito que dificulta a respiração e me faz soltar gritos de silêncio. Sinto-me presa ao meu chão de repugna, aquele que me é tão familiar. É um desespero... Um desespero calado e disfarçado. Não daqueles que me faz trepar paredes, mas daqueles que me faz engolir a mim própria.

quarta-feira, novembro 24, 2004

Insónia

Oh retrato da Morte, oh Noite amiga,
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga.

E vós, oh cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.

Bocage

Roma e Grécia

"(...) ninguém compara a grandeza ruidosa de Roma à super-grandeza da Grécia. A Grécia criou uma civilização, que Roma simplesmente espalhou, distribuiu. Temos ruínas romanas e ideias gregas. Roma é, salvo o que sobremorre nas fórmulas invitais dos códigos, uma memória de uma glória; a Grécia sobrevive-se nos nossos ideais e nos nossos sentimentos."
Fernando Pessoa (1912)

Antítese

É a luz que espero
E a escuridão que finto
É o preencher que quero
E o vazio que sinto

É o sabor doce na boca
E o amargo no coração
É o horror nos olhos
E o bonito na imaginação

É o sorriso que forço
E a lágrima que cai
É o riso que esforço
E o choro que sai

É uma antítese que sou
E é isto que detesto
Não saber onde estou
Nem onde está tudo o resto

segunda-feira, novembro 22, 2004

Espírito de festa

As estrelas são pretas num céu repleto de luzes e ornatos coloridos, em noites de festa, onde os da terra convivem animadamente sem regras ou limites. Festejam o que nem sabem e festejam porque sabe bem o vinho na boca e o jogo diante de seus olhos. Atiram dardos, jogam cartas ou xadrez e ganham prémios sem valor algum ou do valor de uma exibição exarcebada de algo inútil que leva o corpo à exaustão e cujas consequências são as de dor e ressaca. O copo na mão, o cigarro na boca e os gestos bruscos e descoordenados são sinais de alguém que é capaz, com coragem e, por isso, merecedor de respeito. Os mais calados são fracos ou jovens; os que não dançam ou cantam são perdedores e inúteis em festas de pompa igual. O espírito necessário é de alguém que grite, cante, dance, sem vergonha e com coragem para mostrar aos outros tudo o que sabe, embora, muitas das vezes nada de proveitoso, uma vez que, se limitam à demonstração de palhaçadas normalmente bem vindas e aplaudidas pelos que assistem. É este o espírito verdadeiro de festa, alguém que perde o contacto com a realidade e que transborda as emoções correntes agindo da forma que bem lhe apetecer. É assim que vivemos em tempo de exaltação, dotados de um espírito iludido com luzes e prémios, enganados pelo próprio engano, cegos para a vida e com a incapacidade impressionante de encarar a realidade. É assim que afogámos as nossas mágoas quando o pensar nelas nos provoca confusão, receio e tristeza...É assim que esquecemos que vivemos para aprender e para evoluír.

quinta-feira, novembro 18, 2004

Assim escrevo

Não é que tenha inspiração
Ou imaginação fértil
Ou até mesmo jeito
Simplesmente acontece

É um pouco ao acaso
Um propósito sem querer
Um diz que não
Para dizer sim

É como que um impulso
Uma vontade incontrolável
Um fascínio sem descrição
Um jeito sem jeito meio estranho

Ou é como um movimento
Independente e alheio
Um gesto que existe
E eu não sei como

É um acto irracional
Talvez emocional
Imaginativo e incerto
Estranho e agradável

É assim que escrevo
Não porque sei
Mas porque me apetece
E me sinto bem

Digo

Digo que não sou
Mas sou
Digo que não sinto
Mas sinto
Digo que sei
Mas não sei
Digo que dói
Mas não sinto
Digo que calo
Mas falo
Digo que sonho
Mas acordo
Digo que é belo
Mas não gosto
Digo por dizer
E não me calo
Digo que sim
Porque há não
Digo preto
Porque há branco
Digo feio
Porque há belo
Digo que falo
Mas não digo

quarta-feira, novembro 17, 2004

Livro

Deslizo os dedos pela capa
Sinto a textura rugosa
Levo-o junto à cara
E sinto o cheiro a papel velho

Uma primeira abertura
Arrasta páginas
Folheio-o com cuidado
E respiro a sua história

Deixo-me levar
Pelo deleite da leitura
Absorvo as palavras
E preencho-me de significados

Mergulho nas páginas
Desapareço noutro mundo
Alheio ao meu
Alheio ao vosso

Toca-me em sítios inatingíveis
Desconhecidos, impossíveis
No meu mundo, no vosso mundo
Não naquele mundo

Toca-me onde pensei
Não sentir o toque
Toca-me duma maneira
Que julguei não existir

Toca-me porque deixo
Porque mergulho
Porque adoro
Porque sim

É... não tem
É letras
É palavras
É significados

É poder
É calma
É suave
É profundo

É o que adoro
Que preenche
Que aquece
Que ilumina

É tudo aquilo
Que pode
Que atinge
Que toca

É um livro...

Cair

É o sono e a confusão
O neveoeiro e o cansaço
O pesar e o turbilhão
O frio de aço

O gelo no coração
O tapar da visão
A pedra na mão
A amarga desilusão

O cair do corpo
O desistir da alma
O olhar morto
A estranha calma

É um fechar
Cerrar
Calar
Ficar

A agonia e a dor
Do fingir sentir
O perder do amor
Do que é existir

Um morrer
Perder
Falecer
Esquecer

segunda-feira, novembro 15, 2004

Noite de brisa

A leve brisa da noite acaricia a face
O luar brilha no olhar
Na longa espera que tudo passe
Sento-me a ver a noite acabar

O sabor da canela ainda nos lábios
O cheiro nos cabelos a madeira e vela queimada
Um toque suave em instantes sábios
Foram memórias duma noite passada

O abraço forte e envolvente
O balançar carinhoso e lento
Uma respiração quente
Presente nas noites de alento

A lareira apagada
A vela derretida
Uma noite passada
Sem despedida

O beijo que se afasta
A mão que desliza
Um olhar que basta
Numa noite de brisa

segunda-feira, novembro 08, 2004

Não sou eu

Olho-me ao espelho, mas não me vejo; aquele corpo não me pertence... Nada do que vejo é meu e muito menos eu. Não me identifico com o corpo nem com o nome. Chamam-me, mas não olho. Não é por mim que chamam, chamam por um nome. Não me expresso pelas mãos que tanto adoro ou pelos olhos que misteriosamente aprecio. Nada do que mostro sou; nada do que sou mostro. Vivo uma fantasia perturbada, vagueando por caminhos que finjo conhecer. Sinto-me cheia do vazio, pois engano-me a cada momento com ilusões planeadas e passos em falso. Tudo são cenas em palco e nada é real. Tudo é artificial e nada é real. Aqui tudo é efémero e nada me pertence. Afundo-me em papéis e pensamentos...Sufoco com lágrimas secas e sorrisos apagados...Perco-me nos lençóis do meu ser e nas palavras da minha vida...Complico o simples, mas ainda assim tento compreender o complicado. Minhas mãos murcham as flores, meu olhar esfaqueia as peles... Sinto-me a cair, mas continuo em palco. Sinto-me a fugir, mas encontro-me presa por amarras ténues que não sou capaz de quebrar. Sinto-me morrer, mas existo sem o corpo.