- O Sr. já reparou bem num dicionário?... Num dicionário qualquer?... No de Morais, por exemplo... Ou no do povo... (Tanto faz!...) Já reparou?...
Eu esperei pela sequência do discurso. A aproveitar aquela mandriice tão boa de ter alguém a raciocinar por mim.
- Já reparou?... Pois a mim faz-me lembrar, sabe o quê?... Um jazigo de família. Ou melhor: um jazigo de nação. Uma espécie de mausoléu de papel, onde gerações de gatos-pingados empilharam séculos e séculos de palavras, alguma já definitivamente mortas, cobertas de bichos e de coroas saudosas... Outras vasquejaram nos últimos estremeções... E muitas, apenas em estado cataplético, à espera de um toque de dedos para regressarem à monotonia da vida diária... A este maldito bolor, onde ultilizamos ao todo quantas palavras vivas - diga-me lá quantas? Quinhentas? Mil?... Nem tantas, talvez!
Garanto-lhe que, em certos dias, quando subo o Chiado... ou entro num café da Baixa... e ouço essa gente parda a repisar, de manhã à noite, os mesmo termos... as eternas expressões... os substantivos inevitáveis... os adjectivos fatais... e o verbo ser, o verbo haver, e o verbo ter, e o verbo fazer... sabe o que me apetece?... Saltar para cima de uma mesa ou de um marco postal e gritar furioso aos homens: não deixem morrer as palavras, assassinos! Não deixem morrer as palavras!
Caía de bêbado, evidentemente. Mas pela boca roçava-lhe a alegria da volúpia de um sentimento fundo.
- E algumas são tão bonitas!... murmurava absorto. - Quando as vejo deitadinhas nas páginas dos dicionários, com mais de trezentos ou quinhentos anos, sabe do que me lembro sempre?... Daquela lenda das velhinhas milagrosas que, de ninguém as usar, o tempo tornou outra vez novas e virgens...
Deteve-me um momento a esquadrinhar na memória e por fim levantou um dedo de exclamação triunfante:
- Ardimento, por exemplo... Como é que os portugueses puderam esquecer-se desta palavra tão jovem, tão quente, tão expressiva e teimam em usar a infame «coragem» e o ignóbil «entusiasmo»?
E exemplificava:
- «Beija-a com ardimento...» E mais... muitas mais... Tantas que só por ablepsia... Olhe outra: ablepsia... E solerte! Agora já ninguém diz solerte! Porquê? «Fulano é solerte»? E ardiloso? E roaz?...
Para me eximir àquela autêntica inundação de palavras difíceis (e de gafanhotos) formulei com rapidez um plano de defesa que abrangia o seguinte desenvolvimento táctica: «concordar e retirar-me».
Mas o beberrolas, com a presença de um sorriso de lágrimas nos olhos, fincou-me as mãos no casaco, numa brandura de rogo:
- Antes de se ir embora quer fazer-me um favorzito, quer?... Só um favorzinho?... Faz?
Aquiesci.
- Então diga, em voz alta, só para eu ouvir, esta palavra tão bonita: protérvia... Diz?... Protérvia...
E, como eu me retraísse, intimou-me autoritário:
- Vá, diga: protérvia.
- Protérvia... - desembuchei, envergonhadíssimo como se pronunciasse uma obescinidade.
A boca do explicador de português babou-se de consolo admirativo pelas palavras esdrúxulas.
- Protérvia! [...] E impérvio? E estólido? Ouça: e se eu lhe chamasse estólido, gostava? Seu estólido!...
E riu, riu, riu, desdentadamente. [...]
Confesso que aproveitei a aberta do estólido e fugi.
José Gomes Ferreira, Gaveta de Nuvens
7 comentários:
"As palavras mais bonitas são as que nos saem do coração"
Não sei quem disse isto..
Ou se ouvi em algum filme ou música..
Nem se a ouvi alguma vez.
Acho que é na simplicidade das palavras que está a beleza de cada um de nós. Não são precisas palavras "caras" para que nos elogiem a escrita. Não é preciso ser poeta/escritor para que nos expressemos pelo jogo de palavras.
É na simplicidade e na humildade da escrita que nos entendemos uns aos outros.
*
obrigado pelo comment no blog...
É por pessoas como tu que a musica(seja rock,punk,garage,metal,folk,etc) contimua a rolar em barcelos. Pessoas que vao a concertos,que procuram saber e conhecer,que apoiam,que realmente gostam de musica...e por isso que cada vez mais tenho gosto de continuar com o blog. Fazemos a nossa cena local, e cada concerto é uma festa que nao se esquece.
Obrigado por teres estado la,e por teres passado pelo blog.Fica atenta, porque em barcelos as surpresas musicais sao constantes.
bjx*
Ilídio Marques
Fantástico! Tenho que ler este livro.
É curioso como uma pessoa se desmancha a rir, mesmo sem perceber o que o bêbado diz. Ou fui só eu? :D Bom, de qualquer forma, aqui fica uma ajuda para os madraços :P que não se deram ao trabalho de visitar o jazigo da nação:
ablepsia - cegueira;
solerte - artucioso, ardiloso;
roaz - devorador, destruidor;
protérvia - descaro, impudência, brutalidade;
impérvio - inacessível, impenetrável.
estólido - tolo, néscio, estúpido.
Beijinhos, Serenity.
"E riu, riu, riu, desdentadamente." Ah, ah, ah, aaaah!
Eu também não as quero deixar morrer. Obrigado ao Gato Preto por me chamar a atenção para este texto (http://transcriptionofme.blogspot.com/2006/08/alive-n-kicking.html)
Gato, vejo que o texto te inspirou :) Isso é bom. Eu também o adorei e ainda bem que o que pude sentir, mais alguém o pode sentir também.
Em relação às palavras, por muito que goste de ir ao dicionário (é verdade!), a preguiça falou mais alto :x não tinha visto, obrigada por teres vindo escrevê-las :p e também por o teres divulgado :)*
(é sempre óptimo partilhar estas pérolazinhas)
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