sábado, fevereiro 19, 2005

Por cobardia

Por vezes, quero tanto voar...! Levantar os pés, erguer o corpo e lançar-me à escuridão da noite, esperando ser agarrada pelos seus braços, esperando ser abraçada pelo bafo envolvente do seu ar. Quero sentir-me envolvida naquela névoa suave; quero ser aconchegada pelo poder do seu sopro. Quero sentir o frio gélido, que passeia no ar, gelar-me o nariz, moldar-me a cara e entrar, sorrateiramente, no meu corpo e quero ver o vapor sair da minha boca e desvanecer-se no céu escuro.
Quero sentir-me a voar de encontro às estrelas; de encontro aos chamados anjos. Quero ter o que parece ser uma utopia: a paz de espírito que fará com que possa dormir descansada. Sim... quero poder fechar os olhos sem receios, estender os braços e suspirar... Quero poder expôr-me ao mistério da noite sem medos. Quero ser assim, segura de mim, livre do mundo provocador e sentir-me em consonância com o mundo puro. Quero ter os olhos bem abertos para poder ver com sentimento o escuro que me rodeia; para poder ver a claridade, o brilho, a magia do negro cerrado.
Quero olhar o céu em noites de lua-cheia e uivar... rasgar a pele e arrancar os ossos com cuidado e expôr os meus pulmões ao mundo.
Por vezes, quero tanto gritar... Abrir a boca e soltar a voz até ficar rouca e sem força. Quero cantar e lançar o meu som aos cantos do mundo.
E por vezes, quero tanto rasgar-me...! Despir as roupas, arranhar a pele, sangrar, correr e escorregar... Quero partir os dedos dos pés, virar os dedos das mãos, abrir a boca até cortar os lábios, estender os tendões do pescoço até não poder mais... Quero tanto soltar-me...! Não existir aqui, neste corpo imundo que me causa nojo e desgosto; este corpo que parece não ajudar e só me desgasta, que me impede e me anestesia. Quero ser uma só e mais ninguém.
Tantas vezes quis entrar dentro de mim e procurar, percorrer, encontrar... mas em cada tentativa uma nova porta me barrava o caminho, uma nova janela se fechava e me deixava às escuras num mundo tão desconhecido. Então, por vezes, ousei desistir... Ousei deixar as portas fechadas e o interior abafado. Ousei desistir porque não conseguia ver a luz... Quis a facilidade e não tive forças para continuar. Não quis percorrer o escuro com receio e acabei por barrar a entrada em mim. Tive medo; medo do que não via, do que não sabia e voltei para trás, tentando esquecer que um dia tentei, para que não vivesse com a memória dum falhanço. Não queria admitir o maior erro. Quis escondê-lo por detrás do sorriso e dos gestos amistosos, tentei ignorar a escuridão pensando que aquela porta não seria necessária aberta e enclausurei, então, o meu ser naquele mundo frio e dum negro pesado que me turva a mente. Desisti, porque a cobardia, uma vez mais, se revelou em mim. Sou cobarde e o peso da preguiça faz-me rastejar nestes chãos sujos que vomito... Ah! Como pude pensar que seria fácil? Como pude fechar-me por dentro e pensar que seria a melhor maneira? Que seria a melhor maneira, deixar-me às escuras e ir viver para um mundo de falsas luzes e enganos constantes... Como pude ser tão enganada por mim? Eu sei e talvez sempre soubesse que o meu ser definhava dentro das portas que construi em mim. Eu sei e sempre soube que teria que lidar com a sua tristeza, mais cedo ou mais tarde. Contudo, também sei que lido com ele todos os dias... De cada vez que solto um som mais forte, de cada vez que escrevo uma palavra, que crio poemas e relatos de mim... de cada vez que amuo quando o orgulho se sobrepõe. Sem me aperceber, deixo fugir um pouco do meu ser de dentro de mim a cada instante, a cada risada, a cada olhar, por mais que o tente desviar... Sei que sou sem querer e também sei que o que sou é, muitas vezes, as palavras rudes, o fugir de um gesto afectuoso, o refugiar-me na distância. Sei que, talvez, possa ser presente pela minha ausência ou pela minha euforia estranha. Sou uma antítese aos olhos do mundo e aos meus olhos. Em suma, mostro o meu ser a todos a todo o momento... todavia, a subtileza desse mostrar pode-se desvanecer na brisa do dia. Por isso, anseio as noites. Anseio o escuro porque sei que é dele que fujo, porque sei que é ele que tenho de enfrentar. Tento formar a coragem à medida que sinto o momento chegar... mas, por todas as vezes, vou dormir mais cedo deixando a batalha para outra noite. Vou descansar o corpo, esperando amassar a memória de outra noite de derrota por ausência. Tento esconder-me no sono e perder-me nos sonhos de um mundo alheio e tão meu. Por isso, custa o acordar... Não! Não quero levantar-me e esperar por outro momento de luta que sei que nunca conseguirei vencer.

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito fixe este teu texto, identifiquei-me com algumas partes dele, continua a escrever assim :) ****

Unknown disse...

Então levanta-te e... não acordes.

Escreves muito bem e tens aqui textos excelentes. Parabéns.

Continua.